Passada a festa de S. Miguel logo começava a vindima, e terminada esta, seguia-se a apanha do milho que era escanutchado nas fazendas e carregado para o povo nos carros de bois, no lombo de burros ou em grandes canastros à cabeça das raparigas ou em sacas às costas dos rapazes. Naquele tempo no Sobral, era raro o bocado que não fosse cultivado por isso as colheitas duravam até fins de Novembro, quando se iniciava a colheita da azeitona.
Nos serões dessas noites, eram debulhados o milho – quase sempre na maior divisão das casas - com a ajuda de muitos vizinhos que se ajudavam uns aos outros.
Ainda antes, ou logo depois da ceia, começavam os homens e rapazes a malhar a montanha de maçarocas com pesados paus que soltavam e faziam saltar para todos os lados os grãos do milho como estilhaços de granadas. A seguir vinham o resto da malta, velhos e novos que sentados no sobrado em grande roda e se divertiam a falar dos mais diversos temas até a última espiga virar cassamulo. Alguns rapazes mais afoitos até aproveitavam para pedir namoro à rapariga que traziam debaixo de olho. Acabada a tarefa, era habitual a dona da debulha servir água mel -quente - às mulheres, vinho doce, abafado ou aguardente aos homens e algumas guloseimas aos mais pequenos, como figos secos ou maçãs. Mas a garotada que não gostasse do agrado, no ano seguinte raramente comparecia ao chamado.
Alguns proprietários possuíam palheiros próprios para as debulhas que se situavam à volta da povoação e junto de estendedouros e terreiros onde durante três dias secavam o milho antes deste ir para as arcas.
Agora, a estória que vou contar passou-se há muitos anos... ali pelo verão de S. Martinho, um incêndio numa casita do Sobral causou uma tragédia como nunca se vira antes, porque andando o povo inteiro no campo e não havendo sino para tocar a rebate, dois velhinhos entrevados e a sua filha morreram intoxicados e queimados pelo fogo.
Estava combinada para essa noite uma das maiores dedulhas do ano - daquelas que prometia mesmo música de concertina para animar o serão, e miaus, nozes e castanhas assadas para todos. Mas devido ao velório dos três falecidos, a mesma fora adiada. No entanto, dois malhadores, voluntários, resolveram adiantar serviço para noite seguinte e munidos de dois bons cabos de enxadão e duma garrafa de litro de aguardente dirigiram-se a um palheiro ali para os lados onde mais tarde seria feito o novo cemitério. Abriram a porta mas tiveram que entrar de joelhos, e tal era a pirâmide para malhar, que ao levantarem os paus estes batiam nas lajes do telhado.
Ainda pensaram deixar parte para o dia seguinte, mas com o ânimo da pinga - que era da rija - lá chegaram ao fim da empreitada satisfeitos mas alagadinhos em suor.
Sacaram da onça de tabaco, enrolaram e fumaram pensativos o último cigarro e contemplando em silêncio a lua cheia que aquela hora já ia alta, desceram cambaleando a ladeira até à porta do cemitério onde pararam e se despediram.
Nesse momento ouviu-se o piar agourento dum mocho e o cantar triste duma coruja, empoleirada na grande sobreira. Um deles sentiu um arrepio. Não se devia ao frio da noite gelada mas ao gemido vindo do interior do cemitério que estava de porta escancarada...
Também o coveiro, preocupado com as três covas para abrir, tinha ido - aproveitando o luar - até ao cemitério adiantar serviço para o dia seguinte, e lá passara grande parte do serão acompanhado com a sua pinguita de aguardente. Tinha acabado uma cova e preparava-se para abalar quando resolveu ir lá dentro afundar mais umas pazadas, mas desequilibrou-se e caiu batendo a cabeça ficando lá no fundo estendido a gemer e a pedir ajuda.
O malhador que estava cá fora entrou no cemitério e foi cambaleando até à cova, olhou lá para dentro e viu o outro pedindo ajuda, gemendo e a bater o dente.
Nesse mesmo instante, pegando na enxada começou a cavar a terra para dentro da cova dizendo: -"Coitadinho, estás com frio? - Quem será que destapou a roupa da cama" ???
Na debulha da noite seguinte só se falava do novo coveiro do Sobral, aquele que tinha aberto três covas num dia só.
Nos serões dessas noites, eram debulhados o milho – quase sempre na maior divisão das casas - com a ajuda de muitos vizinhos que se ajudavam uns aos outros.
Ainda antes, ou logo depois da ceia, começavam os homens e rapazes a malhar a montanha de maçarocas com pesados paus que soltavam e faziam saltar para todos os lados os grãos do milho como estilhaços de granadas. A seguir vinham o resto da malta, velhos e novos que sentados no sobrado em grande roda e se divertiam a falar dos mais diversos temas até a última espiga virar cassamulo. Alguns rapazes mais afoitos até aproveitavam para pedir namoro à rapariga que traziam debaixo de olho. Acabada a tarefa, era habitual a dona da debulha servir água mel -quente - às mulheres, vinho doce, abafado ou aguardente aos homens e algumas guloseimas aos mais pequenos, como figos secos ou maçãs. Mas a garotada que não gostasse do agrado, no ano seguinte raramente comparecia ao chamado.
Alguns proprietários possuíam palheiros próprios para as debulhas que se situavam à volta da povoação e junto de estendedouros e terreiros onde durante três dias secavam o milho antes deste ir para as arcas.
Agora, a estória que vou contar passou-se há muitos anos... ali pelo verão de S. Martinho, um incêndio numa casita do Sobral causou uma tragédia como nunca se vira antes, porque andando o povo inteiro no campo e não havendo sino para tocar a rebate, dois velhinhos entrevados e a sua filha morreram intoxicados e queimados pelo fogo.
Estava combinada para essa noite uma das maiores dedulhas do ano - daquelas que prometia mesmo música de concertina para animar o serão, e miaus, nozes e castanhas assadas para todos. Mas devido ao velório dos três falecidos, a mesma fora adiada. No entanto, dois malhadores, voluntários, resolveram adiantar serviço para noite seguinte e munidos de dois bons cabos de enxadão e duma garrafa de litro de aguardente dirigiram-se a um palheiro ali para os lados onde mais tarde seria feito o novo cemitério. Abriram a porta mas tiveram que entrar de joelhos, e tal era a pirâmide para malhar, que ao levantarem os paus estes batiam nas lajes do telhado.
Ainda pensaram deixar parte para o dia seguinte, mas com o ânimo da pinga - que era da rija - lá chegaram ao fim da empreitada satisfeitos mas alagadinhos em suor.
Sacaram da onça de tabaco, enrolaram e fumaram pensativos o último cigarro e contemplando em silêncio a lua cheia que aquela hora já ia alta, desceram cambaleando a ladeira até à porta do cemitério onde pararam e se despediram.
Nesse momento ouviu-se o piar agourento dum mocho e o cantar triste duma coruja, empoleirada na grande sobreira. Um deles sentiu um arrepio. Não se devia ao frio da noite gelada mas ao gemido vindo do interior do cemitério que estava de porta escancarada...
Também o coveiro, preocupado com as três covas para abrir, tinha ido - aproveitando o luar - até ao cemitério adiantar serviço para o dia seguinte, e lá passara grande parte do serão acompanhado com a sua pinguita de aguardente. Tinha acabado uma cova e preparava-se para abalar quando resolveu ir lá dentro afundar mais umas pazadas, mas desequilibrou-se e caiu batendo a cabeça ficando lá no fundo estendido a gemer e a pedir ajuda.
O malhador que estava cá fora entrou no cemitério e foi cambaleando até à cova, olhou lá para dentro e viu o outro pedindo ajuda, gemendo e a bater o dente.
Nesse mesmo instante, pegando na enxada começou a cavar a terra para dentro da cova dizendo: -"Coitadinho, estás com frio? - Quem será que destapou a roupa da cama" ???
Na debulha da noite seguinte só se falava do novo coveiro do Sobral, aquele que tinha aberto três covas num dia só.
24 comentários:
QUE GRANDE IMAGINAÇÃO A TUA ,OH VERGÍLIO
Para mim kem bebeu a aguardente foi o vergilio. Ou está a candidatar-se ao premio nobel?
EH sobralense ausente...e tudo se desenrolou lá p'rós lados da tua casa. No lugar do cemitério é agora o salão e a grande sobreira ainda lá está!!! Abraços p/ti.
anónimo querias um prémio nobel Sobralense? nada é impossível para a academia sueca: -O Zé Saramago foi torneiro mecânico e o Lech Walessa electricista.
É não podemos negar que o autor do texto tem jeito pra escrita...
Força Virgílio o prémio nobel te espera...
Vergílio ,estás enganado com a minha entidade pois , nunca tive casa lá para esses lados..mas como diz o comentador "babushka"tens jeito para a escrita
QUERIA DIZER IDENTIDADE
Virgilio estas estorias são arrancadas dos teus sonhos? Bolas cada uma melhor que a outra! Para quando uma compilação?
porque não? já foram entregue premios por menos. No sobral ficava bem. E seria uma boa maneira de promover a aguardente do sobral.
Imaginação e realidades vividas noutras épocas, em que cemitérios e almas penadas, serviam para partidas de "borrar calças" ao maior dos valentões. Os mais velhos sabem muitas!
Foi a essa "fonte" a que foste "beber" não foi Virgílio?
Parabéns!
Então, e o Tchamporrião para aquecer a mente e a alma!...Revigorante de forças.
O Virgílio tinha prometido um conto por mês, há vários meses que o conto estava esquecido, valeu a pena esperar, porque este está demais.
Não apanhava uma barrigada de rir como esta, já há algum tempo.
Ó Virgílio gosto destes temas, para quando um livro, repleto de aventuras.
Adorei a montagem fotográfica! A imagem transmite mt bem as palavras do conto!
Cada xs percebo menos oh padrinho!!!!
é Matemática... é Geografia... é História... "Estorietas"!!! esta tá muito fixe que grd imaginação sim Sr. Parabens!!!
Virgílio:
Devias escrever sempre. Escolher uma editora e publicar...
Tens muito geito para a escrita e uma imaginação fora de série.
No meu tempo, nas debulhas, procurávamos "milho rei". Lembro-me duma vez no vale de água, no palheiro da Cremilde da ti Brás, aparecer uma. Foi um delírio.
No sábado da festa de São Miguel era para ir ao Sobral ajudar na debulha da Cacilda. Só que o meu neto mais novo teve um pequeno problema e, pronto, adiada mais uma vez uma tarefa que me iria dar muito gozo, porque já há imensos anos que não assisto a uma debulha.
Obigado a todos pelo ânimo que me dais. O livrinho dos contos ainda vai demorar uns anitos mas pode sair sim,ou não fosse eu neto do ti Manel das Letras e um apaixonado pelos contos do grande Miguel Torga, que me tem inspirado tanto como o nosso Sobral.
É claro (mariita) que para se escrever e falar é preciso também saber ouvir e observar, e foi isso que eu fiz até aos 14 anos lá no Sobral.
Já disse aqui várias vezes que na taberna e mercearia do meu pai -que só fechava na noite de Natal e quando passavam as procissões e os cortejos fúnebres - ouvi histórias de pasmar e arrepiar, de rir e fazer chorar. Também fui pastor/cavador/sonhador e até malhador.(de milho)lol lol.
Moka, é verdade que prometi escrever um conto por mês, o vagar tem sido pouco, mas cá estou de novo, e do próximo vais gostar também... vai falar nos nossos avós e trisavós e do olival das Vergadas.
Maria Ideias, também só vi milho rei - vermelho - uma vez lá no sobral,coisa muito rara mesmo.
OH ferruky nem tanto, nem tanto,mas digo-te que o meu prof. de Portugûes do 9º ano (em 1973/74) me deu um 16 depois de ler uma redacção minha onde lhe narrava as ceifas e malhas do nosso Sobral.
já chega de conversa,bom fim de semana para todos.
cernelha não me tinha esquecido do tchamporrião,- vinho tinto com açucar e aguardente? servido em malgas a escaldar?!!! mas esse era mais para os homens que malhavam e suavam mais...
Bolas não tenho sorte nenhuma! Debulhei milho tantas vezes e nunca me deram um pinguinho de aguardente para provar, muito menos tchamporrião lol
Tinha sempre que esperar por esta altura do ano para ir dar uma espreitadela ao alambique dos vizinhos, que acabavam por me dar um bérito a provar!
Agora a idade já me permite ir beber um xiripiti ao Ferrolho sempre que me apetecer! Mas continuo a nc ter provado o tchamporrião!!!!!!!!
Virgílio já estou com água na boca, só pelas dicas que referes sobre o elenco do próximo conto. Gosto de ouvir falar sobre os nos nossos avós e trisavós, gosto que me falem dos meus/nossos antepassados. Já te ouvi uma história sobre um olival Sobralense, onde eu era artista, história que eu desconhecia por completo.
Já estou ansioso.
Tchamporrião- também com água e aguardente a escaldar.Este era mais fraco, dependia da quantidade de aguardente (bagaço genuino do Sobral)misturada.
Para adoçar- açucar amarelo/branco e também com mel puro de abelha, este também produto natural e do S.S.Miguel.
Os que suavam nas debulhas,com estes «líquidos» ingeridos, não havia maleitas que entrassem no corpo.É bom para dias frios e constipações, está provado.
Quem quiser que experimente e logo verá!...
tchamporrião é bem bom
tchamporrião é bem bom
Estive para perguntar aqui no Blog o que é, essa coisa de tchamporrião, ainda bem que a Cernelha, explicou como elaborar esta espécie de vitamínico e deu exemplo da sua aplicação.
Nunca tinha ouvido falar, nem vi estas coisas, estava curioso em saber, mas agora que conheço a receita um dia desdtes vou experimentar, estes sabores.
Já tinha saudades dos contos do Virgilio!:) Grande inspiração!:)
Para o Vírgílio
Estamos em Outubro e como gosto deste mês, ofereço-te
Trova do oitavo mês romano
O mês de Outubro, mês do meu apreço,
Dos vinhedos vermelhos-amarelos,
Das nuvens que me recordam castelos.
Ó céus, há quanto te esperava, há quanto...
Como se fosses tu o carcereiro
Libertando o meu canto por inteiro.
Ó mês de Outubro, mês ocotogonal
Que fazes com que sinta tal e qual
A paisagem que, atento, então registo...
Que mais pode ter Deus, pode ter Cisto?
Ó mês de Outubro, mês da minha escolha.
Boiando vão meus olhos como a rolha
Num mar de sensações onde eu me esqueço.
Maria Ideias
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