Acabava de festejar os meus 17 anos e trabalhava há 2 anos como empregado de mesa numa Pastelaria a 100 metros das Portas de Benfica na "estrema" dos concelhos de Lisboa e Oeiras (actualmente da Amadora) e a 2 Kms do estádio da Luz. Dali saíam os autocarros da Carris,( verdes de 2 andares) o 15 para os Restauradores e o 29 para Algés. Aos Domingos, de 15 em 15 dias saía uma carreira para o futebol.
Naquela época de 1972/73, o Benfica ganhara o campeonato nacional com 28 vitórias , 2 empates e 0 derrotas. Tal feito levou-me a pedir ao patrão a troca da minha folga semanal das Terças para as Quartas-Feiras, e assim, graças às borlas dadas por alguns craques a quem costumava servir bicas ou imperiais, tive a oportunidade de ir ver o Benfica jogar com o Malmo, Derby County, Olimpiakos e Ujpesti para a Taça dos Campeões ,e em Setembro estive na Luz a ver a festa da despedida do Eusébio.
«O meu Café» não tinha televisão, por isso era habitual passarem ali ao serão, pares de namorados, jovens recém casados, estudantes "carregados" de livros e até uns clientes que davam sempre gorgeta no fim da noite. Às vezes punha-me a pensar se não seriam informadores da PIDE que iam ali ver se ouviam alguém descontente a dizer mal do Governo. O café à mesa era a 2$OO (1 cêntimo de euro) e ao balcão custava o mesmo de um pastel de nata -1$60!!! Pasteis de nata, vendiam-se ali umas 70 dúzias por dia.
Gostava do meu trabalho e ganhava já como um chefe de família! - Uns 80$00 por dia, mais gorgetas. O meu horário era das 14 h à meia-noite ( jantar das 19 às 21) e estudava das 9 da manhã à 1 da tarde. Segundas, Quartas e Sextas : História,Português,Francês e Inglês. Terças e Quintas : Ciencias,Matemática ,Fisica e Desenho.
Numa daquelas noites, depois de beber a bica e o brandy maciera em cálice balão aquecido,de sacar o ronson para acender o cigarro SG gigante e expelir em direcção ao tecto (já amarelo) uns aneis de fumo branco, um cliente regressado da lua de mel chamou-me perto e disse : -" semana que vem vou à Serra da Estrela em trabalho. Não queres uma boleia e ir ver a tua terra? " Eu nem pensei duas vezes. Como calhava numa Quarta-Feira, disse-lhe logo que sim desde que chegasse-mos a tempo de pegar ao trabalho na Quinta á tarde.
Na manhã do dia marcado, entrei no camião carregado na véspera e minutos depois estávamos a rodar na 2ª Circular, rumo ao aeroporto e auto-estrada do Norte que acabava em Vila Franca de Xira. O almoço foi em Ponte de Sôr e da ementa não me recordo mais, mas a bebida, foi Tinto com gasosa para os dois. Nas duas horas seguintes, para espairecer e quebrar a monotonia dos traços continuos no asfalto, falámos da tropa e aí "o meu amigo" descreveu-me ao ínfimo pormenor os horrores dos dois anos que passara recentemente no inferno das matas da Guiné. Não me esqueço do episódio em que passou meia hora imóvel como uma estátua até ser desarmada a mina anti-pessoal que pisara no meio duma picada. Nem da história do camarada e seu conterrâneo -casado - que tentou suicidar-se antes de regressar à Metrópole ao saber que uma doença venérea lhe ia fazer perder a virilidade para sempre.
Quando exclamei que a tarde estava abafada e que se avizinhava uma trovoada, ele em tom de brincadeira disse logo : -" trovoada e calor era na Guiné! - calcula tu que a água da chuva que se acumulava nas folhas das couves, com o calor que vinha logo a seguir, ficavam cozidas em minutos." Eu sorri e acreditei . Lembrei-me muitas vezes daquelas palavras 10 anos mais tarde, quando morei no Brasil sob o tórrido clima do Trópico de Capricónio. 18 Kms depois de Nisa, ao descermos para a margem do Tejo - que acabava de entrar em Portugal -avistámos a raia de Espanha coberta de castelos de nuvens negras , e mal saímos de Vila Velha de Ródão a chuva começou a cair fazendo-nos companhia até depois de Castelo Branco. À saída de Alpedrinha fizemos fila para matar a sede numa "bica" gelada da ribanceira da estrada e passados 2 Kms imobilizámos o camião. Saímos, e ficámos em silêncio a apreciar a paisagem deslumbrante. Nas nossas costas a planície a perder de vista até Castelo Branco e diante dos nossos olhos, e 250 metros abaixo dos nossos pés, avistávamos toda a Cova da Beira e parte da Serra da Estrela. A poucos metros de nós, do lado de baixo da estrada, o verde e vermelho dos cerejais, de onde saía e chegava até nós o cantar melodioso de rouxinois, e por cima dela, o verde e amarelo dos castanheiros em flor. Poderíamos ficar ali o resto da tarde, mas ao longe, 750 metros acima das nossas cabeças, as Penhas da Saúde pareciam chamar por nós, fazendo-nos lembrar que era lá o fim da jornada. Antes da partida, ainda apreciámos por uns momentos as cores magníficas de um grande arco íris que cobria a distância dos 16 kms entre o Fundão e os pés da Covilhã.
Chegámos por fim ao hotel da Serra da Estrela, onde nos esperavam para descarregar a carga de equipamento hoteleiro que iria apetrechar a cozinha, copa, lavandaria e bares daquela unidade hoteleira prestes a inaugurar. E, enquanto andava por ali a ver as instalações e procurando uma bebida, ouvi vozes que me pareciam de gente conhecida . Ainda pensei que talvez fosse por me sentir próximo do Sobral, mas qual não foi a minha surpresa quando dei com meia dúzia de Sobralenses, quase todos da minha idade a arrumarem as ferramentas de trabalho. "Ainda lá faltavam outros" - disseram-me -" que tinham ido à Covilhã". O Dionísio, o Donaciano e o meu primo (Zé Afonso), que treinava para guarda-redes no Benfica da Covilhã. Fiquei com pena de não ver os ausentes e bebi umas cervejas com os presentes. Despedi-me, e daí a pouco eu e o meu companheiro já estávamos na Pensão a tratar da barriga . Sopa, primeiro prato, segundo prato , vinho da casa ( sem gasosa), e à sobremesa, fruta da época - uma travessa de cerejas -. Era fruta que não se via muito por Lisboa, porque a produção da Cova da Beira ainda não era -como hoje - de centenas de toneladas. Aos fins de semana e Quartas-feiras o Teatro-Cine da Covilhã passava uns filmes, e como eramos fans do Charles Bronson, comprámos bilhetes para vê-lo mais o Jack Palance numa grande índio/cowboyada -um filme de 1972- Desforra Apache .
No dia seguinte madrugámos e tinhamos em mente comprar cerejas para levar para casa, mas como no Fundão ainda estava tudo fechado, seguimos caminho. No dia anterior tinhamos regalalado a vista com aquelas cerejas, e naquele momento já a 2,5 Km do Fundão tivemos a ideia de assaltar uma cerejeiras daquela carregadinhas mesmo à beira da estrada. Afinal com tanta fartura quem é que nos iria recusar um punhado de cerejas? E o dono não estaria bem longe dali para nos ralhar? Bem dito, melhor feito . E em menos de nada já estámos em cima da cerejeira a derriçar para a barriga e a esgalhar uns ramalhetes que metiam cobiça a qualquer um. Saltei da cerejeira e atravessei a lezíria com todo o cuidado olhando para o chão para não esmagar as batateiras, dei umas passadas e ao levantar os olhar vejo a um palmo da minha barriga um ancinho (tipo forquilha) com dentes de meio metro e um homem com cara de má raça a resmungar."sempre se apanham"- disse ele. E eu, sem saber o que fazer, ainda respondi :-"pois é"... Pensava que ele se referia ao apanhar cerejas mas vi logo que era em apanhar os ladrões. Ficou para ali uns momentos a gritar que lhe roubavam tudo. Que não eramos só nós!... e que tínhamos que lhe pagar bem pago. Fez-nos largar tudo no chão e furioso começou a dizer que lhe matávamos a cerejeira . Que iria secar por causa das pernadas cortadas e começou a contar os galhos carregadinhos de frutos vermelhinhos e reluzentes à luz do sol nascente. Fez a conta ao do prejuizo e pediu-nos 300.000 reis. Como vira que nós não estávamos pelos ajustes porque aquilo era demais, virou-se para uma casita velha a 100 metros de nós e gritou:-"oh Ana tráz cá a espingarda". Não vimos sinal de Ana nenhuma, mas ele, foi para a frente do camião, para não lhe fugirmos. Dizia que ia chamar o cabo da guarda para nos levar ao posto. "Tinhamos que pagar" -dizia - e continuava a ladaínha que podia fazer bom dinheiro se não fossem os gatunos...bandidos.
Como o tempo passava e tinhamos a nossa vida em Lisboa, depois de tanto regatear, e para evitar mais chatices , com muito custo lá puxámos de uma nota de 100$00 cada um , pois o velho da camisa branca, calças, colete e chapéu preto, resolvera baixar o preço para 200.000 reis. Ainda queria que deixássemos o produto do roubo mas ficou a olhar para nós quando rapámos tudo e desandámos dali para fora sem olhar mais para as cerejeiras nem ligar ao canto dos rouxinóis que nessa hora cantavam todos ao desafio. Por uns bons momentos seguimos caladinhos a nossa viagem. Mas de repente começámos a gozar com a situação e interrogámo-nos se ele não seria analfabeto? Se calhar ia nos pedir também para lhe anotármos a matricula do camião. Ou que lhe desse-mos boleia para ir connosco ao posto da GNR... Continuámos assim, e de repente, peguei no meu quinhão de ramalhetes e sem querer começei distraidamente a contar as cerejas uma a uma. Quando nos despedimos à 1 da tarde, a 200 metros da minha casa, disse-lhe: - Levo cá 100 cerejas porque as outra duas comi-as. Ficaram a 10 tostões (1$00) cada uma. Nem com um dia de trabalho recupero do prejuízo.
O meu amigo soltou uma gargalhada e disse: -"a minha mulher vai adorar uns brinquinhos de cerejas". Daí a pouco os meus os meus 3 irmãos matavam saudades e a Belarmina ainda perguntou :-" só trouxestes estas" ? Ao que eu respondi:- "come a minha parte porque eu já apanhei uma barrigada delas de manhãzinha."
Nessa noite, enquanto eu lhe servia o carioca de limão, a mulher do meu cliente e amigo meteu-se comigo dizendo: -"oh mulher traz lá a arma", mas a minha história, ficou em segredo até ao mês de Agosto, e contei-a a caminho do Sobral quando iamos todos para o casamento da Belarmina.