Em Abril de 1971 a Revista “FLAMA” publicou uma reportagem de António Amorim e António Xavier, de título “As aldeias da silicose”. Reportagem essa muito centrada no Sobral da época, nas suas gentes, misérias e preocupações. Em jeito de memórias, que o serão para muitos, começo hoje a partilhar com todos os leitores o texto e imagens que há tempos possuo, mas que só agora decidi “postar”.
O texto será colocado por partes, pois é longo. Será mantido o texto original, onde constam nomes de pessoas e casos reais, o que desejo não choque ninguém … Para ler e recordar o que faz (e os que fizeram ) parte da nossa História.
"Uma incursão através da serra ínóspita, pesada de silêncio e distância, poderá transformar-se numa aventura aliciante, atractiva, mesmo desejada. É o prazer de se sentir mais irmanado com a natureza agreste, de se poder atirar os olhos para longe, de se deixar possuir pelo odor da terra selvagem. Pratica-se uma espécie de divórcio apetitoso com a vida do quotidiano civilizado, incontrolável e esmagador.
Atribua-se, porém, uma finalidade, um objectivo definido a essa viagem e tudo adquire uma feição diferente. E se a tarefa é árdua, delicada em si própria, então até os encantadores matizes da paisagem se tornam imperceptíveis à passagem veloz. Os solavancos na estrada de rnacadame são mais duros, a lama avermelhada é mais pastosa, a neve na encosta saibrenta é mais fria e o vento de fim de tarde - ainda mais gélido. Parte-se com a palavra-chave: silicose, e uma ideia revista: “pneumocuniose provocada pela inalação de poeiras sílicas “ . Uma ideia cravejada de pontos de interrogação, de perguntas a que é necessário dar resposta.
E penetra-se nesse mundo quase inexpugnável e estranhamente esquecido. Delineado num mapa vulgar é apenas uma pequena mancha que se encosta ao ponto mais alto do país, a Serra da Estrela.
São os seus contrafortes o ponto exacto do nosso objectivo. Uma vasta zona de extensos pinhais, cobrindo os montes que descem mais abruptamente para o Zêzere.
A estrada de terra maltratada serpenteia, perigosa, com a lama e a neve de há poucos dias. Os quilómetros somam-se cautelosos, sem que apareça vivalma. Finalmente, quebra~se a monotonia com o aparecimento de uma pequena aldeia. Mas passamos, para voltar no regresso. De novo, a estrada por entre os extensos pinhais, a lembrar um túnel tortuoso e infindável, para desembocar quase de chofre em Sobral de São Miguel. Cravada junto ao sopé da encosta, a minúscula aldeia é um ponto perdido na imensidão dos pinhais. Cerca de 35 quilómetros separam os seus (talvez) mil habitantes da cidade mais próxima, Covilhã, sede municipal. Como quase todas as aldeias desta zona, Sobral é uma terra morta, onde a vida parece ter cada vez mais dificuldade em justificar a sua presença. Aqui e ali destacam-se as moradias recentes, às vezes de cor berrante, de tijolo e cimento suados em terra da estranja. As outras, a maior parte, de pedra negra e humilde, são o reflexo da vida árdua, mourejada no campo, ou, em tempos, debaixo da terra. Nas ruelas, estreitas e incllinadas, um ou outro rosto espreita, inquiridor, através da porta entreaberta.
Entretanto, o nosso medianeiro, que nos acompanha desde o Fundão, conversa com um homem de baixa estatura, samarra pelas costas e de chapéu preto na cabeça. É uma das figuras mais imponentes da terra, pelas funções que ocupa na Junta de Freguesia.
Já sabe o motivo que nos levou a Sobral e apressa-se a cumprimentar-nos efusivamente.
Ele diz: : “Pois, claro. Vou mandar chamar essa gente. A hora não é boa, mas veremos o que se arranja”. Eu insisto, com receio de ter feito uma viagem inútil: “É preciso avisar toda a gente”. Meia hora depois concordo com o gesto de certa surpresa que ele deixou escapar. Traduzido em palavras queria dizer: “Espere aí, que, então, vai ver”.