"(...) Pela primeira vez, tive a sensação de ter desencadeado algo para além de todas as previsões. Ou, talvez não se tivesse interpretado convenientemente a razão da nossa presença...
A luz ténue do interior do salão esvai ainda mais os contornos daqueles rostos desconhecidos. A um canto, sentadas quase em religioso silêncio, mais de duas dezenas de mulheres. Vestem todas de negro. Algumas usam um xaile comprido que pende da cabeça, deixando visível apenas o rosto. As outras, um lenço, também negro. Negro é a sua cor. “São as viúvas da silicose, aquelas! “ aponta alguém a meu lado. Olham não sei se com desconfiança ou expectativa. Os rostos enrugados tornam o olhar ainda mais impassível e indecifrável. Nos homens, há uma atitude semelhante. São em número superior, mas distribuem-se em pequenos grupos, conversando em tom confidencial. Quase todos ultrapassam os cinquenta anos de idade, mas o semblante incaracteristicamente monótono tornou-os mais velhos. Também estão intimamente ligados à silicose, isto é, são homens silicóticos, vivendo um drama de longos anos. Um drama que se desenrola no dia-a-dia esquecido da gente que se esquece e cujos lamentos não conseguem ultrapassar os montes que os cercam. Homens e mulheres, marcados, na maior parte, por uma velhice precoce.
Gente nova não está ali; apenas uma ou outra moçoila ainda não decidida a procurar uma vida melhor para lá da serra. Crianças há algumas, poucas. Os rapazes e os homens saudáveis partiram para terras da estranja. Poucos ficaram. Agora, no salão paroquial, o homem de estatura baixa procura fazer-se entender sobre a razão por que mandou chamar os conterrâneos. Vieram quase todos, para falar do seu drama pessoal.
A recompensa indevida
De negro retinto e os cabelos grisalhos encobertos por um lenço caseiro, Conceição dos Santos é uma das muitas viúvas da silicose de Sobral de S. Miguel. Tem 59 anos, idade com que morreu, o marido, João Brás. Desde muito novo que ele trabalhou nas minas. “Aos 15 anos o meu João ficou lá sem uma perna. Ainda aprendeu a arte de alfaiate, que era profissão mais em conta para uma pessoa com uma perna artificial. Como não se governava voltou para as minas por mais 35 anos. Um dia sentiu que não podia trabalhar mais. O cansaço não deixava e foi definhando cada vez mais”.
Para todos, esse era o princípio do drama. O cansaço e a dificuldade de respiração. Depois, a inactividade e uma vida ainda mais difícil. “Sim, que se havia de fazer com os quinhentos escudos mensais da Caixa? Até que, um dia, teve um destancamento de sangue e morreu ao cabo de uma semana. Escoou-se pela boca”. Dos oito filhos do casal, cinco já casaram. As duas filhas menores fazem companhia à mãe. Agora, a Conceição dos Santos não recebe um tostão. “Durante um ano, depois dele ter morrido, ainda me deram os quinhentos escudos. Mas foi só nesse tempo. Hoje,nem isso. Não recebo nada. Para que andou o meu homem a trabalhar tanto tempo?” pergunta, de olhos esbugalhados pela dor e pelas lágrimas. E a mesma pergunta repetir-se-ia dezenas de vezes, tão dura como verdadeira. E quantas vezes já terá sido feita?
Em Sobral de S. Miguel são, talvez, cerca de quarenta viúvas que continuarão a interrogar-se. Da mesma forma, foi difícil estabelecer o número aproximado dos homens afectados pela silicose. À volta de cem, na opinião de alguns. Talvez menos, prognosticam outros. (...)"
7 comentários:
Serranita,
Aguardava com grande ansiedade a continuaçâo (o pròlogo) do primeiro artigo.
Ainda tens mais?
Muito obrigada, de me fazeres lembrar esse meu familiar,(Joâo Bràs) que como o meu pai partiram muito novos para o além.
Era a vida e a tristeza desses outros tempos.
Hoje infelizmente, muito poucos jà se recordam.
Desejo salientar que o numero de silicose, nâo sâo (foram) sò cem!!!!
Mas muitos mais....
O meu pai faleceu com 41 anos logo depois da guerra e na mesma semana faleceram mais dois homens da mesma doença.
Serranita continua, o teu trabalho merece um grande louvor.
Obrigada!
Obrigada, Anónimo!
Existe mais uma parte, que espero deste vez não demorar tanto a publicar.
Ninguém identifica as senhoras? Será que não são do Sobral?
Mulheres sempre de luto, que recordo como parte da minha infância e me fez detestar por muitos anos a cor negra...
Os "senhores" das Minas que tanto nos levaram, não satisfeitos ainda, acabaram por dar a "machadada" final, quando em 2001, começaram a retirar todas as pensões atribuidas às viúvas de quem lá morreu por acidente e que completaram 75 anos...
Não tenho mais palavras...
As Senhoras da primeira foto são: ao cimo a tiTeresa do Zé Paulo ,e a mãe
dela, Ti'Maria Luiza ,de pé a vizinha
Maria Ramos (das scaleras),seguem-se
JoaquinaConstância(doMachado,Delfina Pinta mãe do cantigas , no mesmo degrau na ponta será a mãe do Dr.António (advogado)? a última é Maria Antonia ,avó da Sara do café,
Na segunda foto não sou capaz de identificar nimguem ,embora me paresçam familiares.
posso garantir que nem a minha mãe nem a minha avó se encontram na primeira foto nem na segunda ,depois de ler a primeira parte que menciona a publicação da revista flama de 1971 nessa altura a minha avó já tinha falecido pois faleceu quando eu estava na guiné anos abril 1961 abril 1963.E para melhor me certificar aumentei as fotos ate 460 por cento e em nenhuma das fotos se encontram mais posso dizer que não conheço nenhuma mulher nas fotos
A criança "às cavalitas" terá hoje quarenta anos e a que a carrega cinquenta. Apesar do luto, estamos presentes perante uma espécie de auto de Natal. O fotógrafo foi feliz no segundo click. A sociedade regenerava a todos os níveis: político (fim do salazarismo), económico (fim de um economia fechada, que contava só com os recursos locais, cultural (fim da censura, abertura ao mundo). Como sempre, a vida triunfava, no sofrimento e na dor de uns e na felicidade de uns poucos. Como indivíduos, sabemos que apenas participamos da vida. A vida plena é a mesma vida, chamem-lhe Deus, os que acreditam. Oxalá aqueles, aquelas e nós, todos nos encontremos n'Ele na eternidade, fechando o ciclo, que é a figura da perfeição.
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