quarta-feira, outubro 04, 2006

NO TEMPO DA FOME

Em tempos idos, a fome e a peste pairavam d'amiudo sobre os telhados negros das casas sobralenses. Nalgumas onde escasseavam o pão e abundavam os filhos, eram frequentes as discussões entre os pais, e os choros e gritos entre os filhos. Quantas vezes se ouvia nas casas vizinhas através dos frontais:- Oh mãe tenho fome...oh mãe quero pão... ao que a mãe depois de tanto ouvir implorar respondia:- Queres água filho,queres água...-não mãe,quero pão... - queres pão? Então vai comer filho... - não lhe chego mãe, stá spindurado na trave. Este era o ponto mais alto da casa, e o menos acessível á criançada.
Num daqueles dias ruins, um casal rodeado de filhos e sem nada para lhes dar a comer,lembrou-se de mandaram os garotos ás pinhas e as garotas esfregar a casa da avó que assim ela lhes daria uma malga de caldo. Mal se viram livres dos filhos, foram direitos á cozinha ver se desencantavam alguma migalha pra comer, e depois de tanto olharem, a mulher lembrou-se de ir ao poleiro e voltou de lá com três ovitos das frangas que acabavam de se enxertar e botar os primeiros ovos. Bem quiseram fritá-los, mas sem uma beira de azeite em casa, acabaram por cozê-los.
Reinou a paz durante os breves minutos da cozedura, mas veio a guerra na hora de os repartir... - Eu como dois porque tenho que dar o peito ao mais novo - dizia ela. - Eu como dois, que amanhã vou arrancar torgas para um carvoeiro - dizia ele...E assim se ficaram até que a mulher para se defender, pegou num tanganho da lareira e assentou-o na martola do marido que caiu redondo no meio da cozinha por não conseguir agarra-se ás cadeias que pendiam dum garrote da cozinha.
Ao lusco-fusco, voltaram os filhos mortinhos de fome e a mãe mandou a mais velha repartir com os cinco irmãos os três ovos cozidos,que ela ia a casa da avó dar parte do estado do pai que "tinha desmaido com a fraquesa".
Na manhã seguinte não viram outros geitos senão preparar o enterro do pobr'ihome, e arranjaram-lhe a mortalha, que naquele tempo - ainda não havia caixões - não era mais de que um simples pano branco onde se embrulhavam os cadáveres, que numa simples padiola eram transportados - como os andores - até ao cemitério.
Por ser Domingo, e o falecido ser ainda jovem e pessoa estimada, o acompanhamento era dos maiores que se tinha visto no Sobral,de modos que novos e velhos deixaram nessa tarde o povo sem viva-alma. Á beira da cova o padre começou a encomendar a alma enquanto o coveiro se preparava para tratar do corpo.
Em latim, ouviu-se:-" Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo dai-lhes o descanço" e alguém notou que o corpo se mexia. Ao repetir a frase: - Cordeiro de Deus... o padre também viu o corpo a mexer-se, e á terceira vez, quando o padre ia dizer a frase e acrescentar "dona eis requiem sempiternam" (Dá-lhes o descanço eterno)o morto sentou-se de repente, e ainda embrulhado na mortalha gritou bem alto:- EU COMO DOIS..EU COMO DOIS.
Ouvindo aquilo, o padre deu três saltos e saiu disparado pela porta do cemitério. E o povo espavorido debandou por aquelas ladeiras abaixo. Só o coveiro ficou para trás porque mancava duma perna, e calculando que ia ser apanhado e comido gritava aflito: - Ai de mim e d'outro... ai de mim e d'outro...

6 comentários:

Anónimo disse...

Virgilio, este teu post fez-me terminar o dia(ou começar o seguinte) com um sorriso. Não só o caricato da estória(fez-me lembrar uma outra) mas a maneira como escreveste teve esse efeito em mim, mesmo abordando um assunto meio delicado (a fome).
É bem verdade que os nossos antigos tiveram tempos sofridos e muito dificeis, o que foi brilhantemente transmitido aqui.E ainda uma regra a aprender...nunca arreliar uma Mulher e muito menos se for Mulher e do Sobral!;-)
PARABÉNS!

Anónimo disse...

Virgílio, esta história está realmente muito gira, mas faz-nos pensar na fome que ainda alguns povos atravessam.
A serranita terminou o dia a sorrir e eu iniciei o seguinte da mesma forma.
Todos sabemos que em tempos idos, o povo atravessou muitas dificuldades, não estou a ver, que este teu relato tenha acontecido, imagino que seja um conto e por sinal bem contado.
Os meus PARABÉNS!

Anónimo disse...

muitos parabens e obrigado pela historia...pois fez-nos lembras de como foram os velhos tempos!!!!
fico à espera de mais
jinhos

famel disse...

Não me admirava que tivesse acontecido na realidade, as condições de vida precárias e principalmente a fome, levavam as pessoas a cometer loucuras!
Felizmente nunca passei fome, mas durante uma escavação no alentejo,passei sede, e posso dizer-vos que durante as horas que estive à espera de água o meu cérebro pensava sozinho eu ja não controlava nada...

Anónimo disse...

Virgilio, "mai uma boa estória",... é verdade que estas situações de "fome" se repetiam em mts casas, ...,infelizmente!
Ouvia muitas vezes contar que após muita insistência: "ó pai, tenho fome", "ó mãe quero pão", e depois de muitas recusas, havia um "mafarrico" que chegava à varanda - para ecoar pelo vale do ribeirinho - "QUERRRROOOOOOO BROOOOOOOOOOOAAAAAAAAA", e os pais tão ciosos da sua vida privada - "o que se come em casa não se diz na rua (ou o que ñ se come)" preferiam "calar-lhe" a boca do que toda a gente saber que ñ havia pão naquela casa - ilusão, já q quase todos passavam pelo mesmo! Enfim, peripécias da vida!

Anónimo disse...

Obrigado a vós também, calculei que a estória (conto?) mexe-se convosco.Contou-ma a m/ irmã Guiomar que faleceu em 1971 c/ 24 anos. Dei umas voltas ao texto
para me divertir também.
Moka, continuo morto de curiosidade para saber quem és...dá-me lá umas dicas. e a XE Tambem. TCHAU.